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sexta-feira, 26 de abril de 2019

Análise: como fazer reinserção social se há tanta precariedade?

 — Foto: Igor Estrella/G1
Há pouco mais de um ano, comemorava-se, neste mesmo espaço, o indício de uma mudança que então parecia promissora. Em um dos textos de análise dos dados compilados pelo Monitor da Violência acerca do sistema prisional brasileiro, o pesquisador Bruno Paes Manso destacava a boa notícia contida na redução do número de presos nos estados do Amazonas, Rio Grande do Norte e São Paulo em 2018.
Os dados mais recentes, referentes a 2019, refutam duas das boas notícias comemoradas naquele momento: o estado de São Paulo, que havia reduzido em 3% sua população prisional entre os anos de 2017 e 2018, aumentou em 2,8% o contingente encarcerado entre os anos de 2018 e 2019; movimento similar, mas ainda mais contundente foi observado no estado do Rio Grande do Norte, que havia diminuído em 12,5% sua população prisional ao longo de 2017 e aumentou em 22,2% essa população na passagem entre os anos de 2018 e 2019. Ainda que no estado do Amazonas a tendência de redução da população prisional tenha se mantido entre 2017 e 2019, o ritmo anterior de 13,1% caiu agora para 7,4%, indicando o arrefecimento dos esforços empreendidos no sentido do desencarceramento no estado.
Palcos de alguns dos principais massacres já registrados no sistema prisional brasileiro desde a pilha de corpos observada na Casa de Detenção do Carandiru em São Paulo, em 1992, unidades prisionais no Amazonas e no Rio Grande do Norte registraram 82 mortes concentradas em poucos dias no início de 2017. À época do massacre, foram anunciadas duas principais medidas pelo então presidente Temer: o emprego das Forças Armadas para atuação em presídios estaduais e a abertura de novas vagas, com repasse de recursos aos estados para construção ou reforma de unidades prisionais.
Desde 2017, segundo os dados deste Monitor da Violência, foram criadas 379 vagas no sistema amazonense e outras 1.762 no Rio Grande do Norte e, ainda assim, existem 4.798 presos sem vagas nas unidades do sistema amazonense e outros 3.054 no Rio Grande do Norte. Os casos emblemáticos destes estados e o déficit de 292.586 vagas registrado nacionalmente servem para demonstrar que, enquanto não forem alteradas as bases da engrenagem que lota as unidades prisionais de homens e mulheres, em sua maioria negros, jovens e com baixa escolaridade, não será possível construir unidades prisionais com a rapidez demandada pela realidade.
Nacionalmente, a superlotação do sistema prisional atinge 70,3% em 2019, mas há estados em que o número de presos é maior que o dobro do número de vagas disponibilizadas pelo estado, como no Amapá, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso do Sul, Roraima e Pernambuco.
As unidades prisionais pernambucanas, estado com a maior superlotação em 2019, somaram 11.767 vagas destinadas ao aprisionamento de 32.781 presos. Se estivéssemos tratando de um exercício simples de distribuição matemática, em qualquer sala de aula do país, o excedente seria mero recurso lúdico para explicação do professor. Quando tratamos da distribuição de seres humanos em espaços de privação de liberdade geridos por um estado democrático, a quem foi conferido o poder de punir, imaginar que 2,7 corpos humanos possam ocupar um mesmo espaço atenta contra qualquer parâmetro de dignidade humana.
Entre os eixos a serem considerados na engrenagem que move esse sistema superlotado encontra-se a relação estabelecida entre as polícias militares, responsáveis pelo patrulhamento ostensivo nas ruas e pela alta produtividade de prisões em flagrante, e o Judiciário, que tem reiteradamente optado pela manutenção dessas prisões. Nacionalmente, 37,1% dos presos em 2017 eram provisórios. Em 2018, esse percentual caiu para 34,4%. Mas ele volta a crescer em 2019, atingindo 35,6% da população prisional (ou 252.533 pessoas que, formalmente, não foram condenadas por prática criminosa e, ainda assim, têm seus direitos mais básicos limitados em um contexto de encarceramento).
Nos estados da Bahia, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais e Piauí, mais de metade da população encarcerada ainda não tem sentenças penais transitadas em julgado, pré-requisito formal para que uma pessoa seja considerada condenada. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indicou que 37% das pessoas presas provisoriamente enquanto corriam seus processos na Justiça não foram condenadas à pena de prisão ao final do processo. Se extrapolarmos a estimativa do Ipea para os dados de 2019, poderíamos estimar que existem, pelo menos, 93 mil pessoas presas injustamente hoje no Brasil.

Reinserção social

A superlotação é um grande entrave ao oferecimento de condições dignas de cumprimento de pena no país. Os dados deste Monitor apontam que menos de 19% dos presos trabalham e menos de 13% estudam. A ausência de políticas públicas de educação e trabalho, entre outras previstas da Lei de Execuções Penais, em escala adequada contribui com as péssimas perspectivas de reinserção social destas pessoas, uma vez que tenham cumprido suas penas. Além disso, é fundamental que sejam desenvolvidas políticas de atenção aos egressos do sistema prisional.
A precarização dos espaços de custódia sobrecarrega também os agentes prisionais: há 7 presos para cada agente na média nacional, conforme evidenciado pelo Monitor. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária recomenda uma proporção máxima de cinco presos por agente no sistema penitenciário. Não existe solução estrutural para a questão da segurança pública no Brasil que não passe pela reformulação do sistema prisional. São faces da mesma moeda. Assim como não existe mudança real nas prisões brasileiras sem que se reduza a superlotação do sistema.
A implantação das audiências de custódia no país foi um avanço sobre o problema da superlotação. Contudo, é necessário avançar. É importante que novas vagas sejam criadas, mas é igualmente importante que se reoriente o trabalho policial e da justiça para que a prisão seja reservada para os crimes que mais importam. Para tanto, é preciso aprimorar a atividade repressiva das polícias por meio da articulação, qualificação da investigação criminal e utilização de inteligência.
Sem condições para boa investigação, crimes como o homicídio, o latrocínio e o estupro, por exemplo, não recebem punição adequada e a prisão continua superlotada com pessoas que cometeram crimes que podiam receber penas alternativas, como os relacionados a poucas quantidades de drogas e os cometidos sem utilização de violência, como forma de responsabilização e reparação.


Thandara Santos é integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e David Marques é coordenador de projetos do FBSP