Valter
Hugo Mãe* destaca-se no panorama da literatura portuguesa
pelo carisma e o ecletismo. Escritor, editor e artista plástico, cursou
pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade
do Porto. Possui livros publicados de poesia, contos e narrativa longa,
romances. Em 2007, recebeu o Prêmio Literário José Saramago com o seu segundo
romance, O remorso de baltazar serapião.
“Um país
que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a
suicidar-se. Odeia e odeia-se.”
Os professores”
(texto em português de Portugal)
Achei por muito
tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me
imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da importância
de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se fossem família ou amores
proibidos. Tive uma professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão
de felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade.
A escola, como
mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de liberdade intelectual, de
liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno,
honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso
ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se
tem vindo a tornar.
Nunca tive
exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e
tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me
sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o
Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida
melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora
na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática,
não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho
dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir
conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.
Os alunos
nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a
partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em
melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante.
Punha-me a caminho de casa como se tivesses crescido um palmo inteiro durante
cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido
por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém
os discutisse comigo.
Houve um dia,
numa aula de história do sétimo ano, em que falámos das estátuas da Roma
antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha toda contente e que me deixava
contente também, que eram os olhos que induziam a sensação de vida às figuras
de pedra. A senhora regozijou. Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me
todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela solução, mas porque
tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava
esmagado de beleza. Quando me elogiou a resposta, a minha professora contente
apenas me premiou a maravilha que era, na verdade, a capacidade de induzir
maravilha que ela própria tinha. Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós
os dois, felizes. Profundamente felizes.
Talvez estas
coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade
que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das estátuas que vira em
reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração galopava como se tivesse a
cumprir uma sedução antiga, um amor que começara muito antigamente, se não
inteiramente criado por uma professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado
por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais preciosa
dádiva possível.
Dá-me isto
agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu
próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os professores como má
gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos
pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como
pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos
miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a
casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias.
Estragar os
nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são
fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas
reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem
formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender
no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é
individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos
por natureza andam os destituídos de afeto.
As escolas não
podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser
reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou
trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do
entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os
exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que
não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a
suicidar-se. Odeia e odeia-se.
Autobiografia
Imaginária | Valter Hugo Mãe | JL Jornal de Letras, Artes e Ideias | Ano XXII |
Nº 1095 | 19 de Setembro de 2012.