Pelo menos dois casos envolvendo crianças que atentaram contra as próprias vidas reacenderam, ao longo dos últimos dias, debates a respeito da exposição de meninos e meninas a conteúdos que podem influenciá-los negativamente por meio da internet. Uma garota de 11 anos morreu nesse domingo (17) depois de atirar contra a própria cabeça, no Mato Grosso do Sul. No Paraná, um garoto de 4 anos cortou os dois pulsos, superficialmente, com uma faca no dia 9 de março.
Apesar da distância geográfica, os casos podem ter em comum uma personagem já conhecida entre usuários das redes sociais, inclusive no Brasil: a Momo. Com olhos grandes, pele pálida e um sorriso sinistro, a figura trata-se de uma escultura japonesa, a mulher pássaro, cuja imagem passou a ser usada para ameaçar usuários do WhatsApp e de outras redes.
O “Desafio da Momo” foi relatado pela primeira vez em julho do ano passado, quando a Unidade de Investigação de Delitos Informáticos do Estado de Tabasco, no México, abriu uma investigação. “Vários usuários disseram que, ao enviar uma mensagem à Momo pelo celular, ela respondia com imagens violentas e agressivas. Há também quem afirme que ela respondeu as mensagens com ameaças”, explicou o departamento mexicano, em mensagem no Twitter.
Agora, cerca de oito meses após os primeiros relatos sobre a existência da Momo, a personagem reapareceu em vídeos destinados ao público infantil. A morte da garota de 11 anos, ocorrida em Mundo Novo (MS), e a mutilação do garoto, de 4, podem estar relacionadas ao viral (leia ao fim do texto). Em um vídeo de slime, massinha que faz sucesso entre a garotada, a Momo aparece ensinando, em inglês, o passo a passo de como os pequenos podem cortar os pulsos.
Uma professora compartilhou, por meio do Facebook, no último dia 14, imagens que mostram a filha abalada depois de ter acesso ao conteúdo. Ela fez um alerta e pediu para que pais e responsáveis fiquem atentos às crianças. Mas, até que ponto meninos e meninas são influenciados por virais como o Momo? É possível que eles possam, de fato, cometer suicídio mesmo tão novos?
O psicólogo e psicanalista mineiro Eduardo Lucas Andrade explica que as crianças podem absorver o que chama de “conhecimento entregue de modo covarde” caso não estejam amparadas e preparadas para eles. “O que influencia um jovem a atentar contra a própria vida está relacionado à forma como ele recebe aquele conteúdo e ao preparo para lidar com ele”, diz. “Se a criança está bem orientada, a tendência é de que ela não cai nesses discursos ou tenha meios para lidar com ele podendo contar com um adulto de confiança”, pondera.
Andrade ainda faz um paralelo entre o ataque ocorrido em uma escola pública de Suzano (SP), em que 10 pessoas morreram, e a atuação da personagem Momo para explicar a influência do viral sob as crianças. “Na questão da violência que estão querendo vincular diretamente aos jogos, como se essa fosse a causa, a problemática é bem maior. O jogo violento pode ser entendido, inclusive, como um meio simbólico de não se passar ao ato, de ficar na fantasia e não atuar”, explica.
“Mas depende de cada caso. Seria selvagem e irresponsável amarrar a causa do ataque aos jogos de forma direta. É fugir da responsabilidade. Nosso compromisso maior é pensar o campo da violência e trabalhar a questão social, repensando a educação. É um pouco disso que proponho no livro Psicanálise e Educação, repensar para surgir sujeito e não objetos carnais”, diz.
“O ataque ocorrido em Suzano e a Momo são diferentes, mas se entrelaçam na importância de se falar de tabus de forma responsável que orienta. São casos que se deparam com abandono e desemparo. Carece de fala guia. No caso da personagem, que ‘conversa’ com as vítimas, o diálogo promove uma identificação, uma ligação forte, uma influência sugestiva por meio da apologia à destruição de alguém fragilizado por estar só”, conta.
“No caso da Momo, assim como o desafio da Baleia Azul, o que nos cabe é questionar a participação efetiva de um adulto, de um responsável, para fazer um contraponto ao discurso prejudicial que a criança pode absorver. Escutar e falar sobre. Temos um enorme problema quando a criança não pode falar de assuntos considerados tabus, como violência, sexualidade e morte, pois esta fica à mercê do outro. Já que falam tanto de armamento, vale dizermos que é preciso armar a criança com argumentos, com conhecimento e recursos simbólicos que a permita lidar com aquilo de maneira saudável”, pondera o especialista, que também é autor do livro infantil “Estrela: A bezerra que virou saudades”, em que fala sobre morte e prevenção ao suicídio.
Como entender, então, o suicídio infantil e abordar o assunto com as crianças? Andrade explica que o diálogo deve partir por meio da escuta. “As pessoas acreditavam que as crianças não tinham como cometer esse ato [suicídio], mas muitas vezes somos nós que relevamos e não escutamos a fragilidade dita pela criança. Muitos adultos não conseguem falar do tabu da morte, por exemplo, mas é necessário. É benéfico trabalhar a criança enquanto sujeito com autonomia de si mesmo e refletir e estar ao lado dela, não abandoná-la: ‘como escutar as crianças que falam de suicídio?’. Elas falam e precisamos ouvir”, afirma.
“A orientação básica é não deixar as crianças completamente soltas, monitorar e acompanhar os acessos dos filhos sem fazer isso de forma invasiva. É ver o jogo que está jogando, o vídeo que anda assistindo. Saber o que ela faz. Aprender como funciona. Escutar sobre. É preciso estar presente e participar efetivamente, orientar e mapear os riscos. Diante da identificação de algum problema maior, a ajuda profissional pode ser procurada para se trabalhar tanto com as crianças, mas também com os pais”, explica. “Enquanto há tempo é preciso buscar ajuda”, finaliza.
No Brasil, há um suicídio a cada 45 minutos. Os dados mundiais indicam que ocorre uma tentativa a cada três segundos e um suicídio a cada 40 segundos. Provocar o fim da própria vida está entre as principais causas das mortes entre jovens, de 15 a 29 anos, e também de crianças e adolescentes.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é a terceira causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. É também a sétima causa de morte de crianças entre 10 e 14 anos de idade. O caminho, segundo o presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal) e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, é adotar medidas preventivas de ajuda e auxílio.
“É uma maneira de a gente salvar vidas porque 90% dos suicídios poderiam ser evitados se as pessoas tivessem acesso a tratamento e pudessem tratar a doença que leva ao suicídio”, afirmou o presidente da Apal à Agência Brasil, em 2018. Segundo o psiquiatra, em geral, a maior parte das pessoas que tentam colocar fim à vida sofre de algum tipo de transtorno mental. “Os estudos mostram que 100% de quem se suicida têm uma doença mental. Os trabalhos mostram isso. Nem 100% de quem pensa em suicídio têm doença mental, mas 100% de quem suicida têm transtorno mental”, afirmou.
Reações
Além de levantar debates sobre suicídio na infância, a presença da Momo em vídeos para crianças provocou reações diversas. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) notificou o Google e o WhatsApp para que as empresas removam conteúdos relacionados (veja a nota na íntegra aqui). Já o YouTube divulgou um comunicado, por meio do Twitter, em que diz não ter “nenhum vídeo que promova um desafio Momo no YouTube Kids” e pediu para que usuários do site denunciem.
Casos
Nesse domingo (17), uma garota de 11 anos usou uma arma do pai, um policial militar, para atirar contra a própria cabeça, na cidade de Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul. A menina estaria assistindo a vídeos no celular antes de cometer o ato. Segundo a Polícia Militar (PM), a arma estava em uma gaveta destrancada. Os pais da vítima estavam em outro cômodo da casa.
A Polícia Civil informou ao BHAZ que a morte da garota será investigada, mas que outros detalhes do caso não podem ser divulgados por tratar-se de pessoa menor de idade e por correr em sigilo.
Já no Paraná, um menino de 4 anos teria cortado os pulsos na cidade de Goioerê, no dia 9 de março, depois de assistir a vídeos no YouTube. Ele também teria apertado o pescoço do pai com bastante força. O menino foi socorrido pelos responsáveis.
A Polícia Civil daquele Estado informou à reportagem ter feito contato com a delegacia da cidade, mas que nenhum caso foi registrado até o momento. Portais de notícias da região explicam que o garoto foi socorrido pelos pais e que não precisou receber atendimento médico.